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Quem eles pensam que sou?

Texto original de Rosanna McLaughlin.


Assim como quase todo mundo que usa a internet, acabei vendo coisas terríveis pelas quais não busquei, e agora não posso deixar de vê-las. Animais sendo torturados. Mulheres desconhecidas saindo no tapa em estacionamentos ao redor do mundo. Todos os tipos não-solicitados de tetas, pirocas, peripécias envolvendo silicone e senhorinhas da vizinhança excitadas em busca de sexo casual. Mas a coisa mais devastadora que vi até agora foi um par de sapatos.


A questão “Eles estão me ouvindo?” não me perturba tanto quanto “Quem eles pensam que eu sou?”. Aproximadamente dez anos atrás, enquanto rolava a página de um artigo no meu celular, os vi pela primeira vez: um par de tênis cano alto, de couro branco e cadarços vermelhos. Na parte em que o dedão deveria terminar, o couro estava curvado como se fosse um sapato de bobo da corte, com um pequeno sino dourado pendurado na ponta. Depois de um tempo minha esposa também começou a vê-los. No começo, toda vez que apareciam, achávamos engraçado. “Olha só, é o sapato de palhaço” dizíamos sempre que ele aparecia, e ríamos. Além de serem ridículos, custam 450 libras. Naquela época, eu não ganhava o suficiente nem para pagar impostos e, de qualquer forma, nenhuma de nós estava interessada em alta costura circense.


A única coisa que o algoritmo dos anúncios me apresenta é uma constante fonte de paranoias. Quando uma amiga faz piada sobre calcinhas menstruais, recebo meses de propaganda de lenços para higiene feminina e calcinhas grandes o suficiente para servir em um cavalo. Ultimamente, tenho sido atormentada por anúncios de camisetas com a escrita “fique fora da minha man cave¹” com estilo de fonte gótica. Para quem mais o algoritmo está mostrando esses anúncios? Até onde sei, não sou nenhum patriarca do subúrbio territorialista com meu espaço, não preciso de calcinhas enormes, e também não tenho fetiche por violência entre mulheres. Mas, quem sou eu para dizer que minha mente lúcida sabe mais do que os dados brutos extraídos do meu histórico de pesquisa e de conversas com amigos?


Mais do que qualquer camiseta ou pornô indesejado, os sapatos de palhaço me deram nos nervos. Com o passar dos meses, eles continuam a me perseguir, e todo o humor que um dia tivemos ao ver esse anúncio, foi dizimado. Como um assassino vestido com uma fantasia infantil, seu design ridículo começou a parecer como se algo sinistro estivesse nos espreitando por trás do verniz; os cadarços vermelhos eram um sorriso exagerado pintado em uma máscara branca. Até que um dia, eles desapareceram sem deixar rastros e nunca mais foram vistos. O que restou foi o sentimento incômodo de que, talvez, os dados estejam corretos. Talvez, por mais que meus sentimentos digam o contrário, estes são os sapatos dos quais eu preciso; ou mereço. Porque, por mais que eu queira pensar o contrário, o algoritmo me engoliu. Danço conforme a música, leio o que ele me pede para ler, assisto o que ele me serve, respondo com felicidade, tristeza, raiva e nojo dependendo do comando. Talvez eu devesse ter vendido meus livros, minhas roupas, meus móveis — o que fosse necessário — e ter aceitado meu destino. Talvez, agora mesmo, eu devesse estar andando por aí com couro branco enrolado nos dedos dos meus pés, com cadarços vermelhos enrolados em um laço, sinos tilintando enquanto caminho, vestida como um bobo da corte do algoritmo.


¹termo popularizado na cultura norte-americana, utilizado para designar um cômodo da casa onde o homem sente-se à vontade para passar o tempo fazendo seus hobbies, trabalhando ou reunindo-se com amigos. Escritórios, garagens e sala de jogos são os tipos mais comuns de man cave.

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Jaqueline Bianco | 2025

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